sábado, 11 de junho de 2011

PARA UMA MENINA CHAMADA MARIA

Conto um conto
para Maria,
ela me canta um canto:
Cantoria.


Enquanto canta
encolho-me num canto,
contando as vozes
do seu encanto.


Cada canto de sua voz
é uma conta de um colar,
já contei mil colares
e outros milhares
estão por contar...


Conto um conto
para Maria,
ela me canta um canto:
cantaria.


(Encante-me, que eu conto
todo o seu encanto.)


(Conte-me, que eu canto
em todos os seus contos.)


Eu conto, ela canta.


Eu conto
o seu canto.


Eu conto
o seu canto
enquanto ela canta.


Eu conto
o seu cantar:
encantoar.


Ela canta
o meu contar:
cantarolar.


Ela me encanta!
Enquanto conto.
Enquanto canta.
Enquanto.


Enquanto eu conto
ela canta.

sábado, 24 de abril de 2010

"MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS" - Manuel Antônio de Almeida

análise (trecho):

Quando Napoleão Bonaparte (1792-1821) invadiu Portugal em 1808, D.João VI se viu obrigado a embarcar com sua família para a capital de sua Colônia, o Rio de Janeiro, transformando-a em sede do governo monárquico, a Corte. Esta ocorrência provocou uma série de mudanças na cidade, pois não só a aristocracia real se fixou no Rio como também vários segmentos da sociedade portuguesa que ao se misturarem com os que lá estavam povoaram as ruas do centro com suas diversas atividades e ocupações. As partes mais representativas desta sociedade eram: o funcionário público, o militar, o comerciante, o homem de imprensa; e tendo à margem deste grupo dominante a grande massa popular composta de variados tipos: ciganos, barbeiros, sacristãos, escravos, e uma infinidade de gente desocupada que vivia sua vida pacatamente e driblavam as dificuldades muitas vezes sem atitudes corretas, no entanto de maneira jeitosa e quase discreta.

É esta classe “marginalizada” da sociedade representada por um povo que vive a partir do necessário (ás vezes insuficiente), que encontramos nas páginas do romance peculiar de Manuel Antônio de Almeida, sendo a obra vista como um caso a parte dentro da classificação literária, apesar de estar cronologicamente inserida no Romantismo não é um livro romântico, e realista não chega a ser em sua totalidade, porque ao longo da narrativa pouco se encontra de detalhes profundos na caracterização das personagens, de seus sentimentos ou de seu pensamento, não há minúcias, mas sim um “contar de história” coloquial e desenvolvido por uma linguagem popular e objetiva.

O livro tem seu último capítulo publicado em 31 de Julho de 1853, no jornal Correio Mercantil, no entanto o autor retrocede algumas décadas para situar o cenário de sua história, dizendo o narrador no início do livro que a trama se desenrola “no tempo do rei”, ou seja, entre 1808 a 1822. Manuel Antônio de Almeida recriou o que teria sido o centro do Rio naquela época. E juntamente com este cenário da época da corte Real o qual o autor não presenciou, pois nasceu em 1831, temos características dos costumes e modas narrados de uma forma não tanto aprofundada, mas que esboçam um retrato visível de certos “tipos humanos” apartir de uma imagem caricatural, como o barbeiro, a parteira e o meirinho que era um oficial de justiça da época. A descrição destas personagens é feita com pouca individualidade, onde o autor descreve a figura de um tipo generalizado que a personagem representa de exemplo temos “o barbeiro (que morava) defronte” à casa de Leonardo-Pataca sendo escolhido como padrinho pela sua mulher Maria e por sua Comadre por mera conveniência, logo, o filho de Pataca, Leonardo o “memorando” da história tem como padrinho um barbeiro casual como qualquer outro, desprovido de características próprias ou qualidades específicas, e talvez por isso o narrador tenha omitido o seu nome assim como diversas outras personagens caricaturais do livro, pois o que importa é o que a personagem faz na vida e não o que ela é, ou seja, tem-se uma narrativa de caráter físico, voltada para o exterior das personagens e não explicitando nem mergulhando nos movimentos psicológicos destas.

O leitor acompanhará as desventuras de Leonardo-Filho desde a sua concepção, originada apartir da cômica cena da “pisadela no pé direito” de Maria-da-Hortaliça e do “beliscão nas costas da mão esquerda” de Leonardo-Pataca; passando pelas travessuras de infância e pela “malandragem” da vida adulta. Permeando a saga de nosso anti-herói, posto que Leonardo não tem caráter de “bom moço” ou atos enaltecedores da virtude humana; encontramos descrições (não muito pormenorizadas, mas ricas em caracteres culturais) de festas religiosas e populares que expressam mais uma vez o estilo coloquial da obra. Quando Leonardo tinha nove anos de idade, passou em frente à porta de sua casa uma procissão, “a via-sacra do Bom Jesus”, e não se contentando em olhar, o garoto “misturou-se com a multidão” sem avisar ao seu padrinho. E curiosamente após termos Leonardo metido no meio de um ato religioso, o vemos em seguida numa casa de ciganos (família de dois meninos com quem Leonardo travara conhecimento) que apesar de também festejarem devoção a santos não são bem vistos na sociedade. O narrador fornece ao leitor uma visão preconceituosa ao dizer que junto aos emigrantes portugueses vieram também “a praga dos ciganos”, criticando o modo de vida deste tipo de gente chamando-a de “ociosa e vagabunda”; no entanto o narrador parece lembrar-se de narrar as travessuras do garoto de forma imparcial e termina por contar em bom pedaço de texto as características do “fado”, “essa dança tão voluptuosa, tão variada, que parece filha do mais apurado estudo da arte”, ocorrida na casa dos tais ciganos “ociosos”.

Como que para apregoar o caráter popular da história Manuel Antônio de Almeida cria a personagem da Comadre, madrinha de Leonardo, que é tida como a “papa-missas da cidade” por não perder uma missa, via-sacra ou procissão sequer. Sua “profissão” é a de parteira, e apesar do narrador chamá-la de “ingênua ou tola até certo ponto”, a personagem adquire importância relevante na história, e desconsiderando a personagem principal do Leonardo ela pode ser vista ao lado do major Vidigal, como a mais significante do livro, uma vez que não só ajudou ao Leonardo-Pataca a ser solto da prisão como inúmeras vezes intercedeu por Leonardo-Filho: na tentativa de afastar José Manuel de conquistar Luisinha, amor de Leonardo, ou até mesmo arranjando-lhe emprego de “servidor da ucharia real”. Por mais que Leonardo aprontasse “diabruras” ou fizesse malandragens de vadio, a Comadre sempre estava do seu lado de forma carinhosa e prestativa não o desamparando em nenhum momento. E para não desmerecer o Compadre deve-se dizer que ele também teve um papel importante para com Leonardo, acolhendo-o quando este fora abandonado pelos pais com poucos anos de vida, e educando de forma própria e acreditando cegamente que seu afilhado seria um grande homem, um clérigo na opinião dele, mas tristemente o padrinho não pode ver que rumo tomara na vida Leonardo que alçara ao posto de sargento contando muito mais com a ajuda de terceiros e com a “malandragem” do que com esforços próprios baseados nos ensinamentos adquiridos pela educação que o padrinho lhe dera.

Se o padrinho queria encaminhar Leonardo a uma vida digna e respeitável, temos em um sentido mais amplo o major Vidigal que tinha como “árdua tarefa” manter a segurança e a ordem pública. O autor caracteriza ao extremo esta personagem que era o “rei absoluto, o árbitro supremo”, onde a lei era exatamente aquilo que ele julgava como tal, podendo mandar e desmandar como bem entendesse. Se ele via um grupo de pessoas fazendo uma festinha colocava-se atento junto com seus granadeiros à espreita, esperando um motivo ínfimo ou motivo algum para prender alguém, como no episódio em que Leonardo, Vidinha e os primos dela estavam fazendo uma “patuscada” e derrepente chega o major prende Leonardo sem motivo aparente: “Ele não fez nem faz nada; mas é mesmo por não fazer nada que isto lhe sucede”. Para o major Vidigal o fato de Leonardo não “fazer nada”, ser um vadio, já é uma circunstancia suficiente para ele ser preso, e prende-o sem lhe dar o direito de se defender, pois se ele, o major, era a justiça em pessoa estava então decretado que o sujeito era culpado, sem chances de réplicas. O major Vidigal é a representação de um poder centralizado nas mãos de poucos e que aplica suas leis de forma arbitrária para manter a ordem, ordem esta que é relativa dependendo dos interesses do major, como podemos perceber no final do livro, onde o major após ter prendido Leonardo manda soltá-lo depois que uma cigana, antiga conhecida sua, lhe promete, ao pé do ouvido, algumas intimidades em troca da liberdade do malandro rapaz.

Manuel Antônio de Almeida constrói sua narrativa de forma cômica e entrelaçando diversos acontecimentos que por mais absurdos que possam parecer, é extremamente plausível imaginar que o autor possa ter se inspirado em fatos reais para contar sua história, assim como a personagem do major que de fato era uma figura real, Miguel Nunes Vidigal; dando ao enredo um caráter realista, contrariando um pouco as estéticas açucaradas do Romantismo, como se pode ver no delicado e gracioso enredo de “A Moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo, publicado quase dez anos antes de Memórias, ou no complexo e também romântico livro de Flaubert, Madame Bovary, lançado na França três anos depois de ter saído o último fascículo de Memórias de um Sargento de Milícias em meados de 1853.

A discussão em torno do gênero é apenas mais um aperitivo da obra que é recheada de pontos para análise critica: tem-se a conseqüência da vinda da família real na formação da sociedade carioca da época, onde alguns possuíam emprego graças aos seus estudos em terreno português, enquanto uma maioria de desafortunados vagabundeava pelas ruas malcheirosas do Rio, levando a vida sempre com “jeitinho”; tem-se também a apresentação de personagens-tipo que representam não heróis ou deuses mitológicos, mas seres humanos comuns e com defeitos (muitos até) que não se enquadram em esquemas como o “mocinho” ou o “vilão”, no entanto mostra aos leitores homens e mulheres como todos os outros ao seu redor, de forma não-esquemática e sem as distorções do subjetivismo; enfim, a lista de elementos significativos para um estudo literário é longa, o que nos faz sentir um enorme pesar sobre a morte prematura do escritor Manuel Antônio de Almeida, deixando nós leitores e apreciadores de boas obras com um sentimento de enorme perda, pois infelizmente só temos “Memórias de um Sargento de Milícias”, além da peça “Dois Amores”, para nos transportar para cenários deliciosamente irreverentes, cômicos e naturais, e nos deixar familiarizados com personagens tão próximos de nossa realidade brasileira.

***(L.F.Rovi-2006)***

BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de Um Sargento de Milícias. Ediouro: Rio de Janeiro, 30ªed. 1996.

CÂNDIDO, Antônio. Dialética da Malandragem. In: O Discurso e a Cidade. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 1993.

"UM HOMEM CÉLEBRE" - Machado de Assis

análise:

No conto acima referido encontramos, pelas mãos geniais de Machado de Assis, a narrativa de uma experiência humana e de uma realidade íntima que é observada através das pertubações psicilógicas da personagem principal, Pestana, que se amargura de não conseguir produzir uma obra musical nos moldes clássicos, pois só consegue desenvolver músicas populares - as denominadas “polcas” -, e que estas não lhe trazem um prazer completo, fazendo dele um homem infeliz e desolado quanto ao seu dom artístico, e, desgostoso consigo mesmo, ele vive a vida numa enorme peteca entre a ambição e a vocação.

Esta “vocação” traz ao personagem reconhecimento público de suas obras e o leva tocar piano em saraus e bailes, e neles se vê obrigado a executar suas “odiosas” composições de apelo popular, que merecidamente o tornam “célebre”, já que de fato eram boas segundo ao gênero a que pertenciam. Ao andar pelas ruas, Pestana ouve suas obras sendo reproduzidas no interior de casas “modestas” e até mesmo sendo “assobiadas” por pedrestes; ao invés de se vangloriar e ter satisfação por ter sido o autor daquelas notas, o personagem sente-se “desesperado”, como se a sua própria atividade criadora (ou o produto dela) e meio de vida se voltasse contra ele, o criador, e o fizesse imergir em um estado de existência angustiante, e levando-o a ver a triste e dolorosa realidade da condição humana, que é de ser impotente em relação às limitações interiores que se desenvolvem em seu espírito, transformando, assim como Pestana, em um ser escravo de suas qualidades não desejadas, e que terá sua passagem pelo mundo registrada de uma forma não plenamente representativa quanto à sua multiplicidade psicológica, mas sim de um modelo que de fato o representa não em sua totalidade, posto que não foi possível a este ser exteriorizar suas íntimas sensações de alma e seus profundos, e ambiciosos no caso de Pestana, desejos particulares que iriam lhe trazer grande felicidade em vida, deixando assim no mundo um rastro de existência que expressa apenas um lado do ser humano que existiu, lado legítimo, porém relativo, dependendo do ponto de vista observado.

Esta ambiguidade que toma conta de Pestana, em ser aquilo que os outros veem e não o que está dentro de si, ora é clara e objetiva, mostrando ambos os lados de forma distinta, e outrora é mesclada uma à outra e desaparecendo, aparentemente, a dualidade, como na passagem: Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de cantarolar baixinho,...; e logo adiante o narrador continua a dizendo que Pestana “não desgostou” de ouvir uma de suas polcas “assobiada por um vulto” na rua do Aterrado onde morava, um fato incompreensível, já que no início do conto, com já dito antes, após Pestana sair de um “sarau íntimo” na casa da viúva Camargo, tem-se uma passagem semelhante à descrita acima, porém de reações diferentes, onde Pestana ao chegar na Rua do Aterrado ouve também uma polca sua sendo assobiada por dois homens, e Pestana ao ouvir tal fato entra “desesperado” em casa, como que fugindo daquela melodia composta por ele mesmo. Esta atitude de “desespero” é mais compreensível e melhor assimilada dentro da narrativa como um todo, enquanto que a outra: de “cantarolar baixinho” a sua polca recém-criada, demonstra ser apenas um pequeno traço psicológico de compreensão e satisfação em relação às suas expressivas virtudes, mas, no entanto, como diz a narrativa: essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua.

O “célebre” Pestana passa noites em claro rodeado de quadros de compositores clássicos tais como Mozart, Bach, Beethoven, Schumann, entre outros - um grau expressivo de intelectualidade da narrativa feita em 3ª pessoa -, tentando em vão compor obras semelhantes aos grandes gênios, mesmo que “fosse apenas uma página”, mas tristemente seu esforço, suas hábeis mãos só conseguem produzir “músicas fáceis”. O personagem chega a ter uma ideia de que a incapacidade de compor músicas clássicas devia-se ao fato dele não estar casado, e por ser solteiro e de vida despreocupada ele somente poderia produzir obras de qualidade inferior, como se a genialidade dependesse de alguma posição social (ou estado civil) ou que esta fosse condição necessária para se produzir obras sérias, possivelmente uma crítica de Machado à sociedade sistemática e de cegas tradições do século XIX, sociedade esta que se perpetua em vários pontos até os atuais anos do século XXI. Pestana passa por um vislumbre de alegria ao pensar ter composto um “noturno”, porém sua mulher, também artista da música, o faz ver que estava enganado: a música não era sua, original, mas sim um trecho de uma obra de Chopin, a qual Pestana achara em algum daqueles becos escuros da memória e involuntariamente a copiara.

Em termos físicos, a narrativa se desenvolve num período cronológico amplo, apesar de não narrar ano-a-ano os acontecimentos, o narrador abrange uma década da vida de Pestana, iniciando o conto no fim de 1875 e finalizando-o com a morte do personagem em 1885. O grupo de personagens é reduzido, e os poucos que são citados somente pode ter maior relevância o editor das polcas, que surge como mediador em relação ao desenvolvimento artístico não apreciado por Pestana e também como um aproveitador, que só se interessa em publicar as polcas por elas fazerem sucesso junto ao público.

De volta à narrativa de Pestana, o casamento deste durou pouco, em torno de um ano, e como visto anteriormente, não produziu o efeito esperado, que era o de amadurecimento e “inspiração” por parte do músico de polcas; o matrimônbio teve fim ao morrer Maria, sua esposa, vítima de uma tuberculose pulmonar, já estava tísica antes de casar, deixando Pestana novamente mergulhado no abismo entre sua “ambição” e sua “vocação”. Chegou a tentar produzir um Requiem em homenagem à esposa mas não conseguiu. Após um tempo de recesso, estabelece contrato com o editor para a produção de novas polcas, e assim continua a viver, sem outra alternativa em termos financeiros (as aulas que ministrava eram insuficientes), a apartir de sua (des)prestigiada vocação musical.

Alguns leitores, talvez os mais românticos, possam esperar que no final do conto, a personagem principal finalmente consiga realizar seu sonho, mesmo que nos últimos momentos de sua vida, porém isto não ocorre, talvez pelo fato de ser escrito por um escritor realista e como tal sua intenção era dar originalidade ao texto, inventado uma história que pudesse transmitir não a fantasia do Romantismo mas uma transcrição particular da realidade mundana, onde os seres humanos possuem uma alma complexa e dividida em partes indissolúveis e por vezes incompatíveis, fazendo deles espectros físicos, apartir, não do que se é interiormente, mas representando apenas aquilo que se é enxergado pelos outros; ou seja, uma realidade íntima e característica dos homens de todas as épocas, que é necessário que se trate dela, como disse o próprio Machado de Assis: para que a realidade do cotidiano não se perca. E para Machado nada é perdido.

***(L.F.Rovi-2006)***

BIBLIOGRAFIA:

ASSIS, Machado de. Contos Escolhidos. Klick Editora: São Paulo, 1997.

"A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida."

(Bernardo Soares/Fernando Pessoa - Livro do Desassossego. frag. 116)